Escalando os alambrados: de Oséas a Roger Guedes

Roger Guedes escala o alambrado em Novo Horizonte* por Renato Sansão

O assunto já tem 72 horas, e é bem sabido que uma rotação nas redes sociais equivale a uma translação de mundo real. Mas ainda assim eu gostaria de falar um pouco mais sobre a comemoração seguida de expulsão do Roger Guedes, quando o Palmeiras marcava seu terceiro gol no jogo e dava um passo gigantesco rumo às semifinais do Paulistão 2017.

Poucas profissões nesse mundo dão a oportunidade de EXTRAVASAR, com caixa alta mesmo. Contadores, comerciantes, feirantes, enfermeiros, bibliotecários, economistas, jornalistas, psicólogos, administradores e mesmo engenheiros, publicitários, médicos e advogados vivem suas vidas profissionais em escritórios, consultórios, salas comerciais e meios de transporte variados e presos no trânsito caótico de _________ (complete aqui com o nome de sua cidade).

Atores, atrizes, rock stars e atletas são um ponto fora da curva. Seja nos palcos, quadras, octógonos, sets de gravação ou ginásios lotados, essas pessoas têm a oportunidade de colocar pra fora cada milímetro de angústia que estava preso em suas entranhas. As contas e impostos atrasados, os quilos a mais, um ente querido distante ou acometido por doença grave, colegas de trabalho que insistem em puxar seu tapete, corações partidos: por um momento que vale uma eternidade, tudo é resolvido com uma serenidade Evairesca ao cobrar um pênalti.

Por tudo isso, é inadmissível que a FIFA, o Darth Vader do mais popular dos esportes, proíba que um jogador de futebol extravase ao comemorar um gol. Seja colocando a mão atrás das orelhas, o dedo à frente da boca pedindo silêncio, fazendo careta, atirando com a metralhadora imaginária, fingindo chororô, colocando uma máscara, dançando alucinadamente ou subindo no alambrado: intrometer-se entre o momento máximo do futebol e seu protagonista do momento é uma afronta. Um coito interrompido.

Oséas no alambradoHá 22 anos, comecei a acompanhar o centroavante parrudo de trancinhas que jogava pelo Atlético Paranaense. Não apenas pelo faro de gol, impulsão assombrosa ou pela dupla que fazia com seu fiel escudeiro Paulo Rink, mas pela forma como comemorava seus gols. Ao ver a bola no fundo das redes, Oséas saía correndo como uma besta indomável e subia com impressionante destreza por alguns bons metros de alambrado para extravasar com sua torcida. Um ano depois, o Palmeiras o contrataria e o resto deixo para a História e o Almanaque do Verdazzo contarem.

Comemorações de gols censuradas, cervejas e bandeiras banidas, arredores de estádio sitiados, hino nacional banalizado, torcida única, incontáveis domingos sem ver seu time entrar em campo. Não há nada mais sã que a lucidez contida em alguns tipos de loucura, por isso não surpreende que venha de Felipe Melo o discurso resumido na incontestável verdade: estão acabando com a graça do futebol.

E como sem torcida não existe bola rolando, é dela – e não de federações, redes de televisão, patrocinadores e atletas – que deveria partir seu resgate. O respeito e a tolerância com opiniões contrárias são um bom começo: as pessoas não têm culpa se você, ao contrário do expulso Roger Guedes, não tem a oportunidade de extravasar suas dores e decepções.

* Renato Sansão é leitor do Verdazzo, padrinho do site e escalador de alambrados


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