O Cartola FC, o futebol e a inversão de valores

É começar o Brasileirão que a praga vem junto. A globo.com traz pelo décimo-terceiro ano consecutivo o fantasy game Cartola FC, que mais uma vez bateu recordes de inscrições. Mais de 4 milhões de times foram escalados na primeira rodada do Brasileirão, segundo a empresa.

O game é razoavelmente fácil de entender: com dinheiro fictício, o competidor vai a um mercado fictício e escala seu time fictício, mas tudo baseado nos jogadores reais.

O desempenho dos jogadores nas partidas do Brasileirão, medido pelas estatísticas, são convertidos em pontos, e cada competidor pontua de acordo com os jogadores que escalou naquela rodada. Os jogadores têm seus passes valorizados ou desvalorizados conforme um algoritmo ultrassecreto e os competidores, que ficam mais ou menos “ricos” a cada rodada, alteram seus times para a rodada seguinte com esses recursos.

Parece bem legal, até o momento em que você percebe que os jogadores que pontuaram bem não necessariamente jogaram bem, e vice-versa. O fantasy game, que em tese deveria desafiar os jogadores a buscarem a escalação do time dos sonhos de cada rodada do campeonato, é na verdade uma grande loteria.

Mas o pior não é isso. Começou como uma febre, mas virou endemia: o game conseguiu penetrar de tal forma no público brasileiro (como tudo que a RGT quer que a massa consuma) que hoje é comum ouvir frases no dia a dia relacionadas ao jogo – normalmente pessoas comentando o desempenho de “seus” times.

Já ficou chato. Além do fato de que quem não joga Cartola não está nem aí pro time que alguém escalou, começa a haver uma inversão de valores e o game passa a ficar mais importante do que o esporte. Em vez de comentar os três gols que o jogador fez na rodada, o assunto é quantos pontos ele rendeu para quem o escalou.

Nas arquibancadas do Allianz Parque, o cara um degrau acima do seu comenta que o cartão que o Felipe Melo levou “ferrou o Cartola” dele. Aqui, nos comentários do Verdazzo, já começou a virar assunto. E a comunidade de “cartoleiros” passa a ficar cada vez mais chata.

Até aqui, você, que joga Cartola, deve estar pensando que este é apenas mais um texto reclamão e mal-humorado do Verdazzo. Não que não seja, mas gostaria de chamar atenção para mais alguns detalhes relacionados a esse game.

Big Data

Cartola FCNão é à toa que a globo.com está investindo pesado na massificação do jogo, alimentando o quanto pode sua base de dados e mapeando cada vez mais os padrões de comportamento de cada indivíduo.

O Cartola é a nova mina de ouro da RGT. Notem que as placas de publicidade nos gramados agora exibem a logo do game em vez das tradicionais novelas. O segundo item no menu do portal é “cartola fc”, abaixo apenas de “futebol” – por enquanto. Na TV, você nunca tinha visto o Galvão Bueno, o Cleber Machado e tantos outros apresentadores falarem tanto no jogo.

Reparem no noticiário do globoesporte.com, entre em qualquer índice de notícias de qualquer time da Série A e vai notar que cerca de uma a cada três manchetes se relacionam com o game. É assustador.

Implicância?

Alguém pode contemporizar, mencionando que outras gigantes como Google, Netflix, Facebook e Amazon, entre outras, também estão mapeando nossos comportamentos e que isso não arranca pedaço de ninguém.

Mas ao fazer isso através de um fantasy game que está subvertendo a forma de se acompanhar futebol do brasileiro, a globo.com está, mais uma vez, como vem fazendo há tantas décadas através de suas novelas emburrecedoras e alienantes, moldando o comportamento da massa, de uma forma deprimente.

Instagram WillianE se você ainda acha tudo isto um exagero, leia os comentários deixados num post do Instagram do Willian Bigode, após o jogo de sábado contra a Chapecoense.

Mesmo sem refletir exatamente o desempenho técnico dos jogadores reais, é possível se divertir jogando o Cartola, para quem tem paciência para tal. E dá pra fazer isso sem perturbar ninguém.

A moda seria apenas mais uma inofensiva mania brasileira se não houvesse a inaceitável inversão de valores que faz com que o game se sobreponha ao futebol real. É desesperador testemunhar pessoas assistindo a um jogo de futebol, que pagaram caro pelo ingresso e que estão ali, a poucos metros do verdadeiro espetáculo, com o celular em punho fazendo comentários sobre o quanto determinado lance lhe rendeu num game armazenado num servidor a quilômetros de distância.

Nosso jogador JAMAIS poderia ser cobrado dessa forma, em sua página pessoal, por causa de sua pontuação no Cartola. Este excerto do Instagram do Willian pode parecer uma coisinha boba e sem importância. Mas o monstro está tomando proporções incontroláveis enquanto a RGT sorri de orelha a orelha. Depois não reclamem.